LIMITES E PERIGOS DO NEODESENVOLVIMENTISMO
AS LUTAS SOCIAIS DA AMÉRICA LATINA NAS ENCRUZILHADAS DO NEOLIBERALISMO
Os adeptos da ideologia neodesenvolvimentista reforçam a lógica do capital contra o trabalho e demarcam uma nova fase em que as lutas sociais se darão em um ambiente social ainda mais empobrecido, endividado, violentado nos direitos sociais e ameaçado por um cotidiano de naturalização da criminalização, como mecanismo de contenção dos levantes populares
por: Roberta Traspadini
12 de março de 2017
No século XXI, a América Latina vivenciou processos políticos que se apresentaram como renovadores, após trinta anos de ofensiva neoliberal no continente. Transcorridos dezessete anos de experiências eleitorais de representantes populares que se colocavam como alternativa à lógica estrutural do capital, algumas reflexões são necessárias. Entre elas, cabe perguntar em que medida a alternativa de fato se consolidou. Ou se, ao contrário, houve apenas uma mudança no ritmo do capital, com o objetivo de driblar a crise estrutural emanada da nova fase imperialista.
A fim de transitar por essas reflexões, apresentamos didaticamente três momentos-chave da ofensiva neoliberal – nascimento, freio e retomada na aceleração –, partindo da premissa do caráter desigual e combinado da reprodução metabólica do capital no âmbito mundial com vistas à manutenção de sua ordem.
A questionável ordem do progresso (anos 1970 e 1980)
Ao longo das décadas de 1970 e 1980, algumas situações se complexificaram no âmbito da concorrência capitalista e geraram duros impactos sobre o cotidiano de reprodução social da vida na América Latina. Vivíamos um processo mundial demarcado pela disputa entre duas grandes referências geopolíticas: o capitalismo norte-americano e o comunismo russo.
No âmbito do capitalismo em sua fase imperialista madura, Japão e Alemanha, recuperados após a Segunda Guerra Mundial, que os tirou do páreo competitivo por mais de quinze anos, potencializavam a disputa por taxas médias de lucros que expunham o alto estágio técnico-científico a que chegava o capitalismo. Essas economias, em sua disputa concorrencial com os Estados Unidos, propagavam a guerra por anexação territorial, para a exploração dos recursos minerais ou da força de trabalho. Isso, somado à preocupação dos Estados Unidos com a ofensiva russa sobre a América Latina, exigia um estado permanente de coerção protagonizada pelos donos do poder e seus pares, a fim de não permitir a entrada em cena do inimigo principal – comunista – no continente.
Por trás do discurso do progresso nacional e da luta contra os inimigos principais, construiu-se um novo aparato econômico e político-militar na América Latina organizado e administrado pelos Estados Unidos.
Nessas décadas, parte expressiva das grandes capitais latino-americanas tornou-se uma referência urbano-industrial da ideia de melhoria de vida, culminando na ode à migração forçada em busca de uma oportunidade que jamais se realizaria sem mortes, pesos sobre o dorso de homens e mulheres sem condições de sobrevivência fora da venda de sua força de trabalho. No entanto, a ideologia do desenvolvimento não se atrelava à realidade concreta do desenvolvimento urbano-industrial no continente. Nos anos 1970, a América Latina ainda era majoritariamente rural, com altos índices de analfabetismo formal, abundância de mão de obra jovem sem escolarização e disponível para a superexploração da força de trabalho.
O período militar, ao reforçar o nacionalismo manifesto nos canteiros de obras do desenvolvimentismo geridos pelo capital financeiro internacional, ocultou a coerção e a tortura contra os sujeitos que questionavam a ordem imperante. Esse momento de enraizamento das políticas neoliberais deflagrou, sob o manto nacionalista, a ocupação legal do capital financeiro monopolista na América Latina.
As ditaduras militares ocuparam o poder e materializaram o ideário desenvolvimentista que levou multidões a se inserir nas ilhas de progresso dos poucos centros urbanos da região, diante do esvaziamento intencional do campo para o grande capital agrário. Esse período demarcou o nascimento de vários movimentos sociais camponeses latino-americanos, influenciados pelas revoluções Cubana, Sandinista, Nicaraguense, além da Guerra do Vietnã e dos processos chineses, alemães, coreanos e russos que defendiam uma lógica anti-imperialista explicitada na crítica ao Estado burguês e à propriedade privada.
A guerra de guerrilhas no âmbito rural latino-americano, o levantamento de células políticas estudantis nas cidades e a participação de religiosos da teologia da libertação fizeram eclodir organizações sociais contestatárias à ordem do capital. Nesse período de ofensiva imperialista madura e neoliberal, novos personagens entraram em cena, para parafrasear Eder Sader, e com eles se narravam novos processos de luta emanados de velhas histórias de defesa territorial.
Dos anos 1960 aos 1980 tivemos um rico processo de experiências revolucionárias em que se mesclavam ideias e práticas de uma luta de classes viva, cujos referenciais se alinhavam com as concepções teóricas e políticas do campo marxista. Essa fase é central para expor a raiz e o contexto do nascimento dos principais movimentos sociais latino-americanos que entraram na cena política nas décadas seguintes. Grande parte deles não nasce atrelada aos partidos políticos e está vinculada aos princípios da teologia da libertação, e suas práxis se mesclam com uma mística e uma cosmovisão inerentes à história das resistências latino-americanas na defesa por terra, liberdade e trabalho livre. Sendeiro Luminoso (Peru), Forças Armadas Revolucionárias (Colômbia), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (Brasil), Movimento Revolucionário Tupac Katari (Bolívia) e mapuches (Chile/Argentina) são alguns deles.
Ofensiva neoliberal e massificação da pobreza na América Latina (anos 1990 e 2000)
A década de 1990 intensificou o teor do saqueio na América Latina e exigiu dos lutadores sociais um salto substantivo em suas capacidades de organização política para frear a privatização dos recursos naturais e a mercantilização da terra. A luta contra a privatização da água e do gás na Bolívia, contra a entrada na Alca no Brasil e contra a venda às grandes corporações do Aquífero Guarani no Paraguai colocou os lutadores do campo no centro da cena política contestatária à ordem do capital. Na contracorrente do neoliberalismo, os movimentos sociais entravam em cena como resistências revestidas de caráter emancipatório. Tal situação ao longo do tempo mostrou-se questionável.
Nesse período de retomada da democracia burguesa, cuja liberdade ao capital era sustentada pelo aprisionamento da força de trabalho às condições bárbaras de reprodução social, foram eleitos pelo voto sujeitos vinculados aos interesses imperialistas neoliberais norte-americanos. Com estes, o discurso da modernidade ganhou projeção graças ao protagonismo da mídia televisiva no cotidiano da classe trabalhadora.
A propaganda do capital disseminava de forma intencional o discurso contra os inimigos do progresso. A perseguição aos sem-terra, indígenas, quilombolas e trabalhadores da cidade com ou sem emprego formal era fomentada junto com a pregação do combate à pobreza com trabalho. A ética protestante beneficiou os gigantes proprietários privados internacionais nas terras do capitalismo dependente.
O principal discurso desse período enfatizava a ineficiência do público diante do privado. Os políticos se tornaram representantes dos proprietários privados (inter)nacionais. Assim, abriam alas à hegemonia da ação no continente do capital financeiro monopolista. Venderam terras, empresas públicas estatais, substituíram direitos sociais por mercadorias e flexibilizaram leis trabalhistas. Junto a isso, reforçaram o atraso da defesa nacional perante o discurso de aldeia global como destino certo imposto aos povos do continente.
Em contrapartida à ofensiva neoliberal, os movimentos nascidos nos períodos anteriores ganharam força e projetaram suas próprias mídias no afã de enfrentar o capital. Nessas duas décadas de desmonte nacional e produção-apropriação do capital financeiro monopolista sobre o território, agudizaram-se as lutas sociais em meio à piora da qualidade de vida da classe trabalhadora historicamente superexplorada. Essa fase de intensificação do empobrecimento econômico, aumento abusivo das dívidas públicas com explicitação para o caráter estrutural da dependência latino-americana, além do aumento maciço do sistema carcerário, provocou uma convulsão social.
Como resultado, a América Latina viu florescer a vitória eleitoral de protagonistas populares. Evo Morales (Bolívia), Rafael Correa (Equador), Fernando Lugo (Paraguai), Lula (Brasil), Hugo Chávez (Venezuela) e Tabaré Vázquez/José Mujica (Uruguai) apresentavam-se como novas referências, contrapostas ao fracasso de quatro décadas de ofensiva neoliberal. Suas vitórias, guardadas as particularidades de cada caso, mesclaram a retomada da defesa nacional com a organização de um bloco de poder que se contrapusesse aos imperativos do capital monopolista no continente. Isso tudo em meio à era de crise estrutural do capital.
A ofensiva do capital sobre os territórios e os sujeitos expôs a terra a renovadas dimensões de exploração e especulação, o que gerou a intensificação do saqueio dos recursos naturais, dando continuidade às veias abertas tratadas por Eduardo Galeano. Sob o manto criminoso da negociação nas Bolsas de Valores, o neoliberalismo pôs os trabalhadores rurais sem terra e os povos autônomos do continente em situações mais severas de violação de direitos sociais, o que potencializou a luta de classes no campo latino-americano.
A vitória eleitoral desses sujeitos populares demarcou contradições no interior de cada país, uma vez que expôs situações muito diferentes que iam de processos mais vinculados à institucionalidade (como o do MST no Brasil) a conduções em que os movimentos seguiam críticos à ordem política formal (como o movimento zapatista no México). Isso nos remete à diversidade da luta de classes na América Latina, às concretas situações indigenistas de Bolívia, México, Equador, Peru, e aos casos específicos dos países com desenvolvimento industrial mais avançado, como Brasil, Argentina, México e Chile.
Essa diversidade pintou de cores distintas a ideia de defesa nacional, demarcou com tons diferentes as relações econômicas internacionais e abriu novos mecanismos de negociação com os movimentos sociais. Em situações concretas, a vitória eleitoral de representantes indígenas, camponeses e de trabalhadores urbanos fabris, em vez de potencializar os movimentos sociais em suas lutas históricas, gerou a cooptação institucional de parte dos quadros militantes. Isso provocou parte da letargia na esquerda progressista latino-americana, cujo impacto foi sentido no período seguinte. Essa situação, vinculada a outros problemas relativos à esquerda latino-americana, nos dá a dimensão da crise política que viveremos nos próximos tempos.
Retomada da ofensiva neoliberal, golpes e esvaziamento da luta social organizada (2010-2016)
A vitória eleitoral de governos populares que mesclavam interesses nacionais com a continuidade sistêmica do modo de produção capitalista gerou a continuidade da contradição de primeira ordem: a relação capital-trabalho no continente e a permanência da ideologia nacional-desenvolvimentista como mote para frear a ofensiva neoliberal. Essa terceira fase representa, ainda mais que a segunda, um momento em que os meios de comunicação passaram a ser os reais protagonistas da cena política dos países latino-americanos. É emblemática a primazia dos principais líderes evangélicos na vida política latino-americana e o papel de propagação de seus discursos de veneração e ódio por meio de seus canais de comunicação.
Ainda que no plano nacional os governos progressistas tenham conseguido gerar substantivas diferenciações em relação ao processo neoliberal das décadas de 1970 a 1990, suas políticas foram promovidas em um recuo tático concreto. A reforma dentro da ordem sufocou o horizonte da revolução superadora da ordem do capital. Isso impactou a luta social na América Latina ao vincular os projetos de defesa nacional à dinâmica da reprodução social neodesenvolvimentista, sem questionar a falácia estrutural do modo de produção capitalista.
A ofensiva na deposição de alguns dos representantes populares e o impacto histórico causado pela morte de outros líderes (Chávez e Fidel Castro) têm a ver com uma nova fase de ocupação neocolonial dos territórios e do cotidiano latino-americano. Nesta, as Farc, o MST, o Sendero Luminoso, as Madres de la Plaza de Mayo na Argentina, os mapuches e os zapatistas são apresentados pela mídia como violentos e infratores.
Os golpes narram tanto o ódio de classe do capital contra os trabalhadores do campo e da cidade quanto um processo político de vitória ideológica das ideias nacionais e desenvolvimentistas presentes nos principais mandatários aparentemente contestatários à ordem do capital no continente. Em meio às diversas contradições, o golpe deve ser entendido como o resultado dessas duas forças vinculadas entre si: 1) a força do capital financeiro monopolista internacional irradiada do norte do continente para toda a América Latina; e 2) a força das ações neodesenvolvimentistas que, na aparência de alternativas, reproduzem em essência a lógica estrutural do capital.
Em pleno século XXI, os adeptos da ideologia neodesenvolvimentista reforçam a lógica do capital contra o trabalho e demarcam uma nova fase em que as lutas sociais se darão em um ambiente socioeconômico ainda mais empobrecido, endividado, violentado nos direitos sociais e ameaçado por um cotidiano de naturalização da criminalização como mecanismo de contenção dos levantes populares.
O recuo tático e estratégico no caráter da revolução coloca na ordem do dia a retomada do debate sobre os limites civilizatórios do modo de produção capitalista e a necessidade de sua superação. Após aprendizagens sobre nosso cotidiano violento na luta pela sobrevivência como classe trabalhadora, entendemos na prática que neodesenvolvimentismo e neoliberalismo não são antíteses.
O perigoso desvio revolucionário inerente à defesa do neodesenvolvimentismo acelerou a retomada da ofensiva neoliberal, mesmo quando os líderes são indígenas ou oriundos da classe trabalhadora operária, e gerou para a esquerda latino-americana distorções sobre o exercício do poder na superação do capitalismo que demandarão muito tempo para serem destruídas. Ainda que se diferencie a situação econômica e social dos países latino-americanos, a questão central está em saber o quanto as políticas institucionais foram capazes de frear a ofensiva do capital estrangeiro nos territórios nacionais.
Na atual retomada da ofensiva neoliberal na América Latina, não resta outro processo senão lutar contra o capitalismo em todas as suas formas. Somente a luta organizada e com clareza política é capaz de revigorar o sentido presente da revolução em nosso continente. Trazer para o presente a memória e a história da luta de classes ocorrida ao longo de todo o desdobrar violento do capitalismo, com enraizamento na formação política revolucionária, torna-se urgente em meio à paciência militante que o momento exige. Paciência decorrente dos perigosos desvios provocados pelas políticas neodesenvolvimentistas travestidas de antineoliberais na América Latina. Ou isso ocorre ou veremos nossos processos serem esvaziados de sentido e a classe trabalhadora ser sujeitada a condições ainda mais desumanas de violências cotidianas. Na luta anti-imperialista, não cabe a defesa de reformas nacionais como se estas fossem revestidas de caráter revolucionário. Colocar esses perigos no centro da autocrítica sobre as conduções políticas dos últimos dezessete anos requer humildade e sensatez de grande parte da esquerda militante latino-americana, com vistas à real emancipação dos povos.
*Roberta Traspadini é professora da Universidade Federal da Integração Latino-Americana, no curso de Relações Internacionais e Integração, economista, mestre em Desenvolvimento Econômico e doutora em Educação.
Deixe um comentário